sexta-feira, 18 de janeiro de 2013

Polêmica: Tratar ou trancar?

A polêmica da internação compulsória

Medida sugerida como política pública para usuários de crack provoca discussões; defensores da proposta argumentam que “um em cada dois dependentes químicos apresenta transtorno mental”, aqueles que discordam citam abusos e ineficácia do procedimento

Luiz Loccoman


Drogas como o crack agem de maneira tão agressiva no corpo do usuário que não permitem que ele entenda a gravidade de sua situação e o quanto seu comportamento pode ser nocivo para ele mesmo e para os outros. Foi com base nessa ideia que o deputado federal Eduardo Da Fonte (PP-PE) apresentou em março deste ano uma proposta de política pública que prevê a internação compulsória temporária de dependentes químicos segundo indicação médica após o paciente passar por avaliação com profissionais da saúde. A internação contra a vontade do paciente está prevista no Código Civil desde 2001, pela Lei da Reforma Psiquiátrica 10.216, mas a novidade agora é que o procedimento seja adotado não caso a caso, mas como uma política de saúde pública – o que vem causando polêmica. Aqueles que se colocam a favor do projeto argumentam que um em cada dois dependentes químicos apresenta algum transtorno mental, sendo o mais comum a depressão. A base são estudos americanos como o do Instituto Nacional de Saúde Mental (NIMH, na sigla em inglês), de 2005. Mas vários médicos, psicólogos e instituições como os Conselhos Regionais de Psicologia (CRPs), contrários à solução, contestam esses dados.

Os defensores da internação compulsória afirmam que o consumo de drogas aumentou no país inteiro e são poucos os resultados das ações de prevenção ao uso. A proposta tem o apoio do ministro da Saúde Alexandre Padilha, que acredita que profissionais da saúde poderão avaliar adultos e crianças dependentes químicos para colocá-los em unidades adequadas de tratamento, mesmo contra a vontade dessas pessoas. O ministro acrescenta que a medida já é praticada pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). O Conselho Federal de Medicina (CFM) também é a favor da medida. Durante a reunião de apresentação do relatório de políticas sociais para dependentes de drogas, o representante do CFM Emmanuel Fortes corroborou a proposta de internação compulsória nos casos em que há risco de morte, ressaltando que a medida já é praticada no país.

De fato, de acordo com Relatório da 4a Inspeção Nacional de Direitos Humanos (que pode ser consultado pelo site http://www.pol.org.br/pol/cms/pol/publicacoes/relatorios/ 120123_001.html), apesar de a lei no 10.216 prever a internação compulsória como medida a ser adotada por um juiz, o que se vê na prática com os usuários de álcool e outras drogas contraria a lei, pois introduz a aplicação de medida fora do processo judicial. Maus-tratos, violência física e humilhações são constantes nessas situações. Há registros de tortura física e psicológica e relatos de casos de internos enterrados até o pescoço, obrigados a beber água de vaso sanitário por haver desobedecido a uma norma ou, ainda, recebendo refeições preparadas com alimentos estragados.

DE TRÊS FORMAS

Atualmente estão previstos três tipos de internação: voluntária, involuntária e compulsória. A primeira pode ocorrer quando o tratamento intensivo é imprescindível e, nesse caso, a pessoa aceita ser conduzida ao hospital geral por um período de curta duração. A decisão é tomada de acordo com a vontade do paciente. No caso da involuntária, ela é mais frequente em caso de surto ou agressividade exagerada, quando o paciente precisa ser contido, às vezes até com camisa de força. Nas duas situações é obrigatório o laudo médico corroborando a solicitação, que pode ser feita pela família ou por uma instituição. Há ainda a internação compulsória, que tem como diferencial a avaliação de um juiz, usada nos casos em que a pessoa esteja correndo risco de morte devido ao uso de drogas ou de transtornos mentais. Essa ação, usada como último  recurso, ocorre mesmo contra a vontade do paciente.

CASO A CASO

Para a secretária adjunta Paulina do Carmo Duarte, da Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas (Senad), o discurso que circula sobre epidemia do crack não está de acordo com a realidade. “Há no imaginário popular a ideia equivocada de que o Brasil está tomado pelo crack, mas o que existe é o uso em pontos específicos que pode ser combatido com atendimento na rua, não com abordagem higienista, com o mero recolhimento de usuários.” Dados do Observatório Brasileiro de Informações sobre Drogas (Obid) revelam que 12% dos paulistanos são dependentes de álcool e apenas 0,05% usa crack. A psicóloga Marília Capponi, conselheira e representante do Conselho Regional de Psicologia de São Paulo (CRP-SP), aponta que, apesar dos dados, o crack tem sido tratado como epidemia em todo o território nacional nos últimos anos, e com isso tem sido disseminada a necessidade de uma resposta emergencial para resolver a questão, o que referenda a internação compulsória. Marília, que também é cordenadora de um Centro de Atenção Psicossocial (Caps), argumenta, porém, que essa é uma propaganda falaciosa. Estudos desenvolvidos em centros de pesquisa de várias partes do mundo mostram que de todas as pessoas que se submetem a tratamento para se livrar das drogas, apenas 30% conseguem deixar a dependência; mas o acompanhamento dos casos mostra que é imprescindível o tratamento específico e muito esforço multiprofissional.

O sistema de conselhos de psicologia acredita que a medida fere os direitos humanos e tenta destruir o movimento da reforma psiquiátrica. Defende que não basta reconhecer a insuficiência da rede de saúde na administração das necessidades dos que dependem de drogas, mas estabelecer o compromisso de ampliá-la com o fortalecimento do Sistema Único de Saúde (SUS). Os especialistas acreditam que a opção pela internação em instituição terapêutica deve ser considerada e respeitada, mas desde que seja avaliada caso a caso – e jamais adotada como uma política pública.

“Trabalhadores, gestores e usuários do SUS mobilizaram-se a favor da defesa dos direitos humanos e do tratamento em serviços abertos e articulados com a Rede Antimanicomial. Fica claro que as comunidades terapêuticas não são aceitas pelos que constroem o SUS. Elas se constituem em serviços que se organizam a partir de pressupostos morais e religiosos que ainda persistem devido à correlação de forças nas diferentes instâncias dos legislativos, executivos e judiciários do nosso país”, afirma Marília Capponi. Outro estudo, feito pelo psiquiatra e coordenador do Programa de Orientação e Atendimento a Dependentes (Proad) Dartiu Xavier da Silveira, da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), mostra que apenas 2% dos pacientes internados contra a vontade têm sucesso no tratamento e 98% deles reincidem. “A porcentagem de fracassos é alta demais para que a medida seja adotada como política pública no enfrentamento do crack”, afirma Marília.

Enquanto se discute a questão, dois usuários de crack são internados involuntariamente todos os dias em São Paulo. Entre pessoas dependentes dessa e de outras drogas e a pacientes psiquiátricos, o número de encaminhados para instituições terapêuticas contra a própria vontade nos últimos oito anos passa dos 32 mil, segundo dados do Ministério Público. Marília garante que as experiências relatadas por quem já passou pela internação forçada são desumanas. O Conselho Federal de Psicologia (CFP) tem proposto debates para discutir formas de enfrentamento do uso abusivo de álcool e drogas ilegais, argumentando que o problema tem raízes na desigualdade social e que apenas articulações em rede, da qual participem diversos setores e instituições sociais, podem ser eficazes para resolver a questão.

 A abordagem dos usuários deve ser humanitária.

CONFLITOS E DESAFIOS

O movimento da reforma psiquiátrica é uma luta pelos direitos de pacientes psiquiátricos que denuncia a violência praticada nos manicômios e que propõe a construção de uma rede de serviços e estratégias comunitárias para o tratamento dessas pessoas. O movimento ganhou força na década de 70 no Brasil com a mobilização de profissionais da saúde mental e familiares de pacientes insatisfeitos com os métodos praticados na época. A nova política de saúde mental visa o tratamento em rede substitutiva, ou seja, em locais que o paciente possa frequentar, sem a necessidade de passar longos períodos internado, longe da convivência familiar e comunitária.

O movimento de desconstrução do hospital psiquiátrico implica um processo político e social complexo, composto de diversos atores, instituições e forças de diferentes origens do qual o CRP participou efetivamente; por isso a instituição se posiciona contra as internações compulsórias e contra as comunidades terapêuticas, defendendo o tratamento em locais abertos ligados à rede antimanicomial. Para isso luta pela ampliação dos serviços oferecidos pelos Centros de Atenção Psicossocial (Caps), que é um trabalho em saúde mental aberto e comunitário do SUS e local de tratamento para pessoas que justifiquem sua permanência num dispositivo de atenção diária; nas unidades de acolhimento transitório, postos que funcionam como uma passagem breve para o dependente, que depois será encaminhado a serviços de reinserção social. Também são considerados necessários consultórios de rua que atendam à população em situação de risco e vulnerabilidade social, principalmente crianças e adolescentes usuários de álcool e outras drogas; bem como a oferta de leitos em hospital geral e equipes de saúde mental básica articuladas com as redes de urgência.

Uma contrapartida à internação compulsória é o reforço de políticas públicas de tratamento em rede substitutiva, em convivência familiar e comunitária aos usuários de entorpecentes. “A dependência química é um fenômeno que deve ser discutido da perspectiva biopsicossocial; o tráfico, o desemprego e a violência pedem intervenções mais amplas e recursos de outras áreas como educação, habitação, trabalho, lazer e justiça”, ressalta Marília.

fonte: Scientific American Mente e Cérebro on line