sábado, 27 de agosto de 2011

AFETO QUE CURA

Revista Mente & Cérebro
ed. 169 - Fevereiro 2007



            Os animais sempre estiveram próximo do homem participando de atividades de caça, tração, locomoção, pastoreio, guarda, companhia e tantas outras. Embora sejam predadores, na maior parte das vezes são presas. Ao longo da história da humanidade, a domesticação de algumas espécies transformou tanto os animais quanto os hábitos e o estilo de vida das pessoas.
            Desse modo, a vinculação humana com bichos de estimação acrescentou um novo tipo de relação com complexidade e características próprias. Povos de diferentes culturas mantêm vínculos afetivos com essas espécies, sugerindo a existência de denominadores comuns.
            Nas últimas décadas, porém, surgiu um dado novo: o crescente interesse científico pelo estudo da relação homem-animal, tendo em vista seu potencial terapêutico. As modalidades de intervenção com a participação de animais abrem, para os profissionais da saúde e da educação, perspectivas de uso de recursos terapêuticos auxiliares.

            CONFIANÇA
            O primeiro relato da participação de animais em tratamento de saúde na sociedade ocidental contemporânea remonta ao final do século XVIII, na Inglaterra. O Retiro de York - instituição psiquiátrica que empregava métodos terapêuticos considerados mais humanos para a época — mantinha coelhos, gaivotas, falcões e aves domésticas nos pátios e jardins freqüentados pelos pacientes. Essas criaturas eram geralmente muito familiares aos pacientes e acredita-se que, muito mais que um prazer inocente, despertavam sentimentos de sociabilidade e benevolência nos internos.
            No século XIX houve um grande crescimento da participação de animais nas instituições mentais da Inglaterra e demais países europeus e americanos. Quando os primeiros textos científicos começaram a ser publicados, tal prática já não era tão rara. Em 1944, James Bossard escreveu um artigo sobre o papel dos animais domésticos na família, em especial para crianças pequenas. Mas foi a partir da década de 60 que o psicólogo americano Boris M. Levinson iniciou uma série de estudos de situações clínicas nas quais a presença do animal era fundamental no processo terapêutico. Um cachorro, por exemplo, poderia satisfazer a necessidade humana de lealdade, confiança e obediência. A relação da criança com o animal permite nuances num nível intermediário, diferentes das estabelecidas com pessoas e objetos inanimados. Ainda nos primeiros anos é possível perceber que brinquedos não podem dividir sentimentos, pois não são vivos, não crescem nem respondem. Segundo Levinson, “diferentemente da relação que estabelece com a boneca, a criança pode conceber o animal como parte de si mesma, de sua família, capaz de passar pelas mesmas experiências que vive”. Esse relacionamento oferece aos pequenos a possibilidade de se expressar mais livremente.

            CUIDAR DO OUTRO

            Posteriormente aos estudos de Levinson, merecem destaque as pesquisas dos psiquiatras Samuel e Elizabeth Corson. Na década de 80, eles usaram cães na psicoterapia em instituições psiquiátricas. A experiência foi realizada com 50 pacientes com alto grau de introversão que não respondiam ao tratamento convencional e relutavam em estabelecer contatos. Apenas três deles não apresentaram melhoras em seu estado clínico. Os demais, gradualmente, desenvolveram desejo de independência, sentimentos de auto- estima e senso de responsabilidade. De acordo com os pesquisadores, esses aspectos ficavam mais pronunciados à medida que os internos assumiam os cuidados com os cães. Segundo os psiquiatras, cachorros reúnem características que facilitam a interação, com pacientes: prontidão em oferecer afeto e contato táctil aliados à confiança que despertam. Para a maioria das pessoas, o resultado é uma reação empática, investimento afetivo e sentimento de responsabilidade em relação ao animal.
            A comunicação não-verbal, no entender desses autores, pode ser considerada ferramenta terapêutica dessa relação entre pessoas e bichos. Eles observam que as palavras ditas pelos humanos muitas vezes não condizem com o que a expressão corporal revela. E, de alguma forma, ainda que inconscientemente, essa mensagem dúbia é captada — o que influi de forma negativa nas relações, inclusive entre terapeuta e paciente. Já a aproximação entre pessoas e animais, por outro lado, ocorre de maneira direta e sem interferências de racionalização e intenções implícitas. Com isso, favorece a inclusão do bicho no universo de fantasias infantis. A vivência propicia maior confiança em si e no ambiente e a associação dessa proximidade com experiências prazerosas. Analisando a prática clínica desses autores, podemos supor que, para eles, o animal pode atuar como “recurso de contato” com o paciente.

            LIBERDADE DE EXPRESSÃO
            Estudos recentes indicam que os animais interagem com as pessoas não a partir das intenções ou sentimentos delas: o bicho responde ao comportamento humano. As pessoas, por sua vez, reagem às ações dos animais atribuindo-lhes sentido com base em seu próprio referencial. Como não há troca de palavras, a especificidade da relação, especialmente com cães, ocorre por meio de gestos e movimentos. Na ausência da dimensão verbal, é possível criar uma forma de comunicação em que o ser humano pode livremente atribuir significados à ação do animal, permitindo maior liberdade na expressão de sentimentos.
            Há vários mitos a respeito de meninos selvagens cuidados por animais — como as lendas de e Remo, fundadores de Roma, a história de Tarzã, o rei dos macacos e a de Mogli, o menino lobo. O caso de Victor, conhecido como “o selvagem de Aveyron”. é verídico. A história foi contada no cinema por François Truffaut, em 1969. Existem registros de que ele foi encontrado solitário e já adolescente nos bosques do sul da França, em 1799. Victor cresceu na mata, sem contato humano, após ter se perdido de sua família — quando era muito pequeno. Intrigado, um pesquisador assumiu sua educação e tentou ensiná-lo a usar a linguagem. Entretanto, o menino encontrava-se num período de desenvolvimento psíquico primitivo, longe da diferenciação entre eu e não-eu.

            OLHOS DE MÃE
            Diferentes linhas da psicanálise e da psicologia enfatizam a importância das relações humanas para a constituição do indivíduo. Para Winnicott, o ser humano desenvolve-se da dependência absoluta do ambiente rumo à independência, num complexo processo de amadurecimento no qual o potencial herdado e as provisões do ambiente estão em constante interação.
            O educador brasileiro Rubem Alves ilustra bem essa concepção quando diz que “entre os bichos a maternidade é coisa de útero. (...) Já seres humanos são gerados nos olhos das mães”. Portanto, quando pensamos nas relações entre pessoas e animais é importante ter em mente que é o ambiente humano que contribui para o desenvolvimento do psiquismo e não a relação com animais de forma isolada.
            Ao considerarmos as intervenções com a presença de bichos é imprescindível levar em conta o contexto no qual se desenrolam tais interações. Imaginemos uma criança brincando com um cachorro adestrado, correndo e pulando. Ela pode estar experimentando um momento de criatividade que inclui o uso do corpo. Caso um adulto interfira na situação, mostrando que o cão obedece aos comandos sentar e ficar parado, no intuito de indicar que a criança também deveria ser obediência a experiência enriquecedora é interrompida, podendo levar a uma submissão em relação ao ambiente.
            Segurar um cachorro pela coleira, virar para a direita ou para a esquerda, andar em linha reta ou na diagonal, jogar bolas de diferentes cores para que ele pegue, conversar sobre as partes de seu corpo (orelhas, patas, focinho etc.), escová-lo, correr por um circuito com obstáculos, acarinhá-lo... Essas situações e tantas outras abrem as possibilidades de que o contato com o animal seja um recurso terapêutico em diferentes áreas de atuação: fisioterapia, terapia ocupacional, fonoaudiologia, psicopedagogia e psicologia. O fato é que o contato com animais pode ser ponto de partida para o desenvolvimento de diferentes habilidades, tais como aprendizagem de conceitos, estimulação da linguagem, motricidade e expressão de emoções.
            No caso de Suzana, uma garota de 16 anos com paralisia cerebral tipo tetraparesia (com grande dificuldade de controle motor e rigidez muscular), isso se mostrou de maneira clara. Ela começou a jogar bolinha para uma cadela mostrando muita dificuldade para abrir e fechar a mão. Passado um tempo brincando, o mesmo movimento ficou muito mais fácil. Sua fisioterapeuta comentou que, em consultório, para fazer o mesmo movimento ela reclamava e até chorava e ali, brincando com a cachorrinha, abria e fechava a mão sem perceber. Ela estava se divertindo. Ou seja: o movimento ganhou um sentido que envolvia a afetividade e o interesse pelo animal.
            Da mesma forma, um fonoaudiólogo pode partir do interesse de seu paciente por um animal para trabalhar a estimulação da linguagem e obter outros ganhos. E um terapeuta ocupacional, utilizar como recurso o controle da motricidade ao incentivar o paciente a escovar o cachorro ou segurá-lo numa para desenvolver maior capacidade de percepção por meio do toque no animal. Na psicopedagogia, aspectos relacionados à aquisição de conceitos como cor, tamanho, seqüência, forma, quantidade podem ser estimulados por meio de objetos usados para brincar com animais. São usadas, por exemplo, bolas de diferentes cores e tamanhos, assim como seqüências de atividades para facilitar a condução do cão.

            SEM INVASÃO
            Muitas vezes, o contato com animal é um recurso usado para o estabelecimento de comunicação com o paciente — e não uma terapia em si, assim como a brincadeira numa sessão de ludoterapia ganha sentidos próprios em função da especificidade da relação terapêutica.
            Em algumas situações o animal funciona como elemento intermediário entre terapeuta e paciente, evitando que este se sinta invadido — o que pode acontecer especialmente em quadros clínicos nos quais pessoa está mais fragilizada, fechada no próprio mundo ou sentindo-se ameaçada pelo ambiente. Nesse casos, a presença do bicho facilita as intervenções, apropriação da experiências pelos pacientes e pessoas participantes e — seguindo a terminologia de Winnicott — o despertar do gesto espontâneo na busca do verdadeiro self. Como assinala esse autor, “é no brincar, e somente no brincar, que o indivíduo, adulto ou criança, pode ser criativo e utilizar sua personalidade integral: e é somente sendo criativo que o indivíduo descobre o eu (self)”.
           


 ASSOCIAÇÕES E EMOÇÃO


            Espécies diferentes costumam despertar variados sentimentos e atitudes, tais como carinho, empatia, cuidado, identificação, hostilidade e medo. Dentre os diferentes aspectos que podem ser mobilizados alguns podem emergir apenas na relação com o animal, sugerindo que sentimentos difíceis de ser vivenciados no mundo humano encontram possibilidade de manifestar-se em relação com os animais.
            A forma como cada um lida com as situações vividas com os animais permite uma comunicação de seu mundo interno, valores e sentimentos, revelando aspectos subjetivos. Há situações em que o animal suscita conteúdos mentais das pessoas, tanto por seu simbolismo e pelo que pode representar como também pelos diferentes comportamentos que levam a associações e a experiências emocionais. Em psicoterapia, o contato com bichos pode facilitar a comunicação de conteúdos internos do paciente para psicólogo. O recorte de uma sessão de uma menina que vivia num lar transitório à espera de adoção mostra isso. Em seu primeiro contato com o cão disse à psicóloga que seu avô tinha um cachorro igual, depois parou e emendou: “Na verdade, o cachorro é da minha mãe mas está com meu avô”, evidenciando que em sua família de origem pessoas e animais “são de sua mãe” – mas, assim como a garota, são cuidados por outras pessoas.





           



 CARLOS E AS PALAVRAS


            O caso do paciente Carlos apresentado por Nise da Silveira contém elementos significativos para o entendimento do tipo intervenção proposta pela psiquiatra.
            A expressão verbal do paciente era praticamente ininteligível. As palavras fluíam em abundância, freqüentemente pronunciadas com veemências, mas não se ordenavam em proposições de significação apreensível. O grande número de neologismos tornava ainda mais difícil a compreensão de sua linguagem. O caminho para o entendimento do rapaz fez-se por intermédio do animal. Do relatório da monitoria Elza Tavares, em 10 de março de 1961:
            “Carlos chegando perto de um de nossos cães, o Sultão, abaixou-se de cócoras, falou carinhosamente e com nitidez: “Você é muito bonito e valente, tem uma orelhinha cortada, isto é prova de bravura, eu também vou valente, sou nonai. E durante longo tempo acariciou focinho do cão”. Estava decifrado um dos neologismos muito empregados por Carlos: nonai significa valente.
            O relacionamento afetivo de Carlos com Sultão foi acompanhado por mim e pelos monitores. O doente durante anos absorvido no seu mundo interno, agora cuidava da alimentação de Sultão, banhava-o, penteava-o. Mas aconteceu o pior na dia 16 de setembro de 1961 Sultão foi morto por envenenamento. Com a perda daquele ponto de referência no mundo externo, investindo de muito afeto Carlos regrediu, tornou-se ainda mais inacessível. Que confiança poderiam merecer os seres humanos?
            Só dois anos depois Carlos ligou-se a outro cão: Sertanejo. Os monitores informavam-me que em assuntos referentes aos animais Carlos exprimia-se em frases gramaticalmente construídas. O psicólogo Paulo Roberto relata: “Carlos continua fazendo de Sertanejo seu confidente. Disse-nos que conversa com o Sertanejo como as demais pessoas falam quando conversam ao telefone. Colabora espontaneamente com a monitora. Nazareth na limpeza do local onde dormem os animais e dando banho nos cães aos sábados”.
            No dia 27 de agosto de 1965, logo que chequei ao hospital, Carlos me disse: “Quero dinheiro para despesas do Sertanejo”. Perguntei espantada: “Que despesas?”, e Carlos respondeu: “Água oxigenada, mercúrio cromo, gaze”. Sertanejo havia ferido uma das patas. Carlos fez as compras na farmácia próxima, trouxe o troco certo do dinheiro que lhe dei e com perícia fez o curativo na pata de Sertanejo.
            Desde que existe polarização intensa de afeto dirigida pelo desejo de socorrer o amigo, tornava-se possível retomar a linguagem verbal ordinária nem que fosse por momentos. Sob ação do afeto, os laços frouxos do pensamento apertaram-se, permitindo comunicação com a exata pessoa que poderia ajudar.
            Carlos e Sertanejo eram amigos inseparáveis. O cão sem coleira e guia, acompanhava Carlos em longas caminhadas pelos arredores do hospital, à igreja da paróquia, ao cemitério. (Silveira, Imagens do Inconsciente, 1981, Editora Alhambra)



          



SIGLAS E DENOMINAÇÕES



            Diferentes termos já foram usados para nomear as intervenções com uso de animais: em 1964, Boris Levinson as definiu como pet therapy (terapia com animal de estimação); depois adotou o nome pet psychotherapy (psicoterapia com animal de estimação), delimitando a área de atuação do psicólogo. Posteriormente surgiram outros termos: Human/companion animal therapy (terapia humano/animal de companhia), animal facilitated therapy (terapia facilitada, pelo animal), zootherapy (zooterapia). Esses termos causavam confusão pois não havia definição clara sobre eles, já que as pessoa os usavam com sentidos variados. Pet therapy, por exemplo, pode referir-se tanto a terapias desenvolvidas por profissionais da saúde quanto a programas de visitas a instituições nas quais o dono e seu bicho interagem com a população atendida.
            Atualmente, as intervenções com participação de animais são denominadas: animal assisted activity, termo traduzido no Brasil por atividade mediada (ou assistida) por animais (AAA) e animal assisted therapy, traduzido por terapia mediada por animais ou terapia assistida por animais (TAA).
            A primeira, dirigida ou realizada por profissionais da saúde, pode ter função motivacional, educacional, lúdica ou terapêutica e conta com participação de voluntários. Já a TAA tem propósitos mais específicos e direcionados de melhorar o funcionamento físico, social, emocional e cognitivo. Ambas podem ocorrer em ambientes variados. Os procedimentos costumam ser documentados e avaliados.
            Embora não haja ainda uma definição sobre a intervenção pedagógica, na prática tem sido chamada de educação assistida por animais (EAA); suas Idéias principais se encontram na Declaração do Rio, elaborada pela International Association of Human-Animal Interaction
Organizations (Associação internacional das Organizações de Interação Homem Animal, www.iahaio.org).